Silêncio crescente e constrangedor. Dou uma limpadinha na garganta, incomodada, mas sem coragem de falar. Ele, confuso, olha de um lado para outro, esperando que alguém o socorra. Não há mais ninguém aqui. Ele suspira.
No meu prato, diante de mim, jaz o que um dia foi um porco. Meu estômago se revira. O cheiro, o aspecto, tudo me revolta. Seguro o choro, mas por pouco. Como ele pode? E ainda me olha com a cara mais débil desta vida, como se não estivesse entendendo o que fez de errado.
Penso em me levantar e ir embora, mas cadê coragem? Porque ele é lindo, realmente muito lindo, e, tirando o porco no meu prato, ele foi perfeito em tudo, até agora. Mas isso só pode ser brincadeira de péssimo gosto:
– Eu te falei que sou vegana! – digo, enfim.
– Er… Falou – respira aliviado. – Mas não falou que não comia carne de porco.
– Como assim?! Veganos não comem carne! Veganos nem usam couro! A gente não compactua com morte e sofrimento, poxa!
– Ah… – ele me olha e parece ainda mais pateta – Então é isso que é ser vegano…
– O que você achou que fosse? A gente se conheceu na Internet. E, na Internet, tem sempre gente brigando por causa do veganismo. Todo carnista se ofende ou faz piada com veganos. “Bacon! LOL!” – faço uma careta de desdém. – Nunca viu?! Em que mundo você vive?
– Eu não me envolvo em treta. Sou deboísta fundamentalista. Você sabe…
– Desinformado fundamentalista! E como você pode ser “de boas” e continuar comendo morte?! Tá “de boas” pra você e dane-se o resto do mundo?!
– Você está exaltada e eu não gosto disso… Não me sinto bem em discussões sem motivo…
– Sem motivo?! Você coloca um ser senciente no meu prato, com a cara mais lavada desta vida, e me diz que eu não tenho motivo para estar putíssima?! Seu bocó!! – gritei!!
– Isso é intolerância religiosa. Você está me agredindo naquilo que é mais caro para mim: o meu sossego…
– E a vida do porco?!
– Você está gritando…- ele fala baixinho…
– E gritar ainda é pouco – grito ainda mais alto. – Minha vontade é de te chacoalhar até sair substância de uma pessoa fútil, egoísta e ignorante como você!!!
– Auto lá! Sou ignorante por quê? Porque não acompanho essas modinhas?!
– Modinha?! Veganismo é filosofia de vida, seu imbecil sem conteúdo! Ao contrário de deboísmo, uma bobagem qualquer que surgiu de memes de redes sociais. As páginas deboístas, inclusive, brigam entre si, sabia?!
– Blasfêmia! Retire isso!! – ele grita.
– Deboísta e gritando?! Choquei…
– Você não ganha nada me ofendendo e ofendendo a minha fé – diz, retomando o volume de voz baixinho.
– Isso é o que você ganha ao ofender a minha. Porcos são animais inteligentes e gentis – e começo a chorar.
Ele se levanta e vem me consolar:
– Calma… Me desculpe… Eu não sabia que você amava porcos. Achei que ser vegano é gostar de transar com árvore.
Paro de chorar e olho para ele, incrédula! “Como assim?!”
– Para você ver como sou “de boas”: nem me incomodei com essa sua excentricidade. Mas, Gisa, transar com porcos não é crime?!
Enfurecida, empurro-o para longe de mim. Tonto como é, ele cai e bate com a cabeça no chão. Jamais me esquecerei desta linda cara de pateta, enquanto verte sangue pela nuca. Enfim, conteúdo e substância…
Pego meu telefone e ligo para o SAMU.
***
– O que aconteceu aqui? – pergunta-me o paramédico. Sílvio é seu nome.
– Eu o empurrei. Ele esborrachou-se, como um saco de batatas.
– Por que?
– Sei lá. Talvez a fragilidade dele não seja só mental.
– Ele está morto – diz o segundo paramédico.
– Hmmm… Eu o matei? Como fica isso para uma vegana?
– Vegana? – o paramédico Sílvio olha em volta e vê a mesa ainda servida – Ele te ofereceu carne?
– Sim – choro – e de porco!
O paramédico me abraça:
– Não é sua culpa. Ele mereceu – Sílvio diz, sob o olhar pasmo do segundo paramédico.
– Vou ter que chamar a polícia – este diz.
– Por favor, chame – digo. – E o que vai ser de mim?! Veganos não matam… – e abraço Sílvio ainda mais.
– Você não o matou. Foi a estupidez que o levou desta vida.
– Oh, Sílvio… Posso te chamar de Sílvio, né? – ele concorda com a cabeça. – Eu te falei que ele me acusou de transar com os porcos?!
Com os olhos arregalados e indignado, ele diz:
– Vai ficar tudo bem. Você já aguentou o bastante. Veganas não deveriam mesmo se relacionar com carnistas, moça. Nunca!
– Você tem razão… Isso jamais acontecerá novamente! Juro! É que me deixei levar pela aparência dele… Tão bonito…
– Não sou tão bonito quanto ele, mas sou vegano…
***
Enquanto saio escoltada por um policial, dou uma última olhada no morto, no prato e no paramédico. Sílvio realmente não é TÃO lindo, mas está vivo e é vegano. No fim das contas, sou uma garota de sorte.