Um gato preto

A sorte me abandonou ainda no berço, quando um incêndio me deformou. Fui uma criança amaldiçoada pelo infortúnio, tive pólio, que me aleijou. Cresci para me tornar um homem azarado, pobre, feio, solitário. Nada em minha vida deu certo.

Diante deste precipício, não penso em uma só coisa que poderia me fazer mudar de ideia, que me impeça de pular. E, logo ali, diante da minha miséria, apenas um gato preto me observa, irônico, desafiador.

– Eu vou pular!

– Miau – ele responde, enquanto lambe elegantemente a pata de trás.

Observo o abismo enquanto imagino a dor do impacto no asfalto, lá embaixo. Com minha falta de sorte, não morro de imediato e passo horas e horas em agonia. Agonia… Em nada seria diferente da minha vida, hoje. Mas, ao menos, será o fim.

Avalio minha vida, deixo que ela passe, tal qual um filme, diante de meus olhos… Penso mais uma vez de meu cachorro Bob, meu único amor, arrancado de mim pelo pessoal da zoonoses, que insistia em dizer que ele tinha leishmaniose. Ainda me lembro da súplica em seus olhos, da culpa em meu coração… Quem sabe nos encontraremos agora, Bob?! Quem sabe…

Miau… Meus pensamentos são interrompidos pelo maldito gato preto a se esfregar em minhas pernas.  Xô!

Ele me olha nos olhos e pisca um olho. O que significa? Xô, porcaria, xô! Mas ele não se afasta. Ao contrário, começa a escalar minha calça, ferindo minha pele com as unhas afiadas. Apoio na muleta e tento retirá-lo da minha perna, com cuidado, para não cairmos. E por que eu deveria ter cuidado para não cair se estou prestes a me jogar?! Não é por mim, é pelo gato.

Ele desce e se esfrega em minha muleta. Por um segundo ou dois, perco o equilíbrio. Ufa! Foi por pouco…

O gato se afasta, lentamente, e meu olhar o acompanha até perdê-lo de vista…

Pronto… O gato se foi e, com ele, toda minha concentração e esforço para cumprir esta última tarefa. A mais fácil da minha vida. Arruinada. Maldito seja o gato!

Saio cuidadosamente do beiral em que me encontro e parto em direção ao gato. Não quero mais morrer. Quero dar leite ao gato, quero aninhá-lo em meus braços. O gato me salvou. É o gato preto da minha sorte!

Demoro a encontrá-lo, sobre o muro, a me observar, novamente. Pisca um dos olhos. Parece me sorrir. Desajeitadamente, tento chegar até ele. Tento convencê-lo a descer, mas não tenho nada que possa interessá-lo… Gatinho, psiu, psiu, gatinho…

Ele vira as costas para mim e desce do muro, do outro lado. Devo desistir? Sim…

Volto para casa, arrastando meu corpo cansado e disforme, como sempre, mas sentindo-me bem, como nunca. Há razões para se viver. Pequenas, inexplicáveis, mas reais. Como um gato preto.

Um gato preto